Sunday, December 14, 2008

Wednesday, December 10, 2008

Si piensas...

Si piensas en partir, también me voy...


© Fernando Faria Paulino, 2006

Monday, December 08, 2008

07. Imagens que marcam... Tinariwen


© Thomas Dorn

Vencedores do galardão de melhor formação World Music do continente africano, pela BBC em 2005, os Tinariwen encontram-se profundamente ligados à causa do povo Tuaregue, apelando à consciencialização política para problemas como o exílio, a repressão e a extradição nos diversos países do deserto do Sara.

Conhecidos como o primeiro grupo a fundir a música tradicional Tuaregue com guitarras eléctricas, os Tinariwen são mais do que um grupo musical, representam uma verdadeira associação cultural com um objectivo muito forte: a defesa de um povo e da cultura Tuaregue.


© Tinariwen

Tuaregue, uma experiência de deserto

A 3 de Abril de 1992 era noticiado nos orgãos de comunicação social portuguesa os três ataques consecutivos levados a cabo por tuaregues, à expedição portuguesa que tentava efectuar a ligação Lisboa-Luanda ao longo do continente africano.

Viaturas, dinheiro, objectos e documentos pessoais desapareceram durante uma etapa de deserto. Só a intervenção por parte do governo português, que colocou à disposição da caravana um Hércules C-130 da Força Aérea, permitiu o repatriamento dos 70 expedicionários portugueses. O jornal Público noticiou o acontecimento com o sugestivo título "O dia mais longo no país dos tuaregues".

Foram várias as pessoas que nos dias seguintes me abordaram, para a pergunta redutora. Afinal os tuaregue eram "bons" ou "maus"? As notícias vindas a público contrariavam de alguma forma as imagens que eu vinha transmitindo ao longo dos anos, àcerca deste povo berbere do deserto, com os seus territórios repartidos pelos diversos países do norte de África.

Decorridos precisamente nove dias dos referidos incidentes, encontrava-me já em Tânger, preparado para rumar a sul, nas poucas pistas passíveis de serem atravessadas, sem autorização especial ou escolta militar.

O fascínio do deserto e pelo deserto. A sua dimensão oculta. Mano Dayak, antropólogo, um dos tuaregue que mais lutou pela causa do seu povo, escreveu um dia: "O deserto não se conta, vive-se" (Durou, 1994:8). Concordei eu próprio mais tarde com a veracidade de tal afirmação. Por mais relatos que tivesse lido sobre o Deserto do Sara, é a própria vivência que nos leva a conhecê-lo melhor.

O deserto é um espaço privilegiado de relações. De relações com o meio, de relações com os seus habitantes, de relações com nós próprios. É este processo de relações, de comunicação, que nos leva a conhecê-lo melhor.

Foi a necessidade de melhor compreender a minha relação com o deserto, a minha posição nesse processo de comunicação, que me levou a procurar testemunhos dos seus habitantes, relatos dos viajantes ao norte de África, relatos dos exploradores que o atravessaram. Enfim, testemunhos de experiências do deserto.

Foi assim que a minha rota se cruzou com "A Primeira Travessia do Sara em veículo motorizado", levada a cabo pela Citroën em 1922.



Tal expedição reunia todo um conjunto de ingredientes, cuja desconstrução me pareceu desde logo aliciante. Tratava-se à partida, da primeira travessia do deserto utilizando veículos motorizados, era empreendida por uma empresa, situava-se numa época de consolidação da política colonial europeia, no período pós Grande Guerra, em plena expansão industrial do continente europeu. Ao longo da expedição tinham sido realizadas centenas de fotografias que dariam origem à publicação do diário da expedição e, recolhidas imagens cinematográficas que deram origem ao grande filme documentário "A Travessia do Sara", cuja estreia recebeu o alto patrocínio do Presidente da República Francês.



A ideia base do projecto, segundo André Citroën, nasce da procura de uma ligação prática entre a Argélia e a África Ocidental Francesa. É em consequência da I Grande Guerra e devido à necessidade de fazer chegar à metrópole francesa os recursos existentes nas suas colónias (Senegal, Guiné e Congo) que surge a ideia do raide trans-sariano. O Sara surgia pois como o grande obstáculo que era necessário vencer.

É assim que cinco viaturas equipadas com um sistema de lagartas, transportando 10 exploradores e uma cadela (esta, com um papel activo ao longo de toda a expedição), partem de Touggourt a 17 de Dezembro, atravessam 3.500 quilómetros de deserto e, vinte e dois dias mais tarde, chegam a Tombouctou. O veículo motorizado acabara de vencer o deserto.



Vale a pena citar o discurso de André Citroën, quando teve conhecimento do êxito da expedição: "No momento em que entram na pérola do Níger, depois de terem executado esforços sobre-humanos, um trabalho de titã pela causa da humanidade e pelo triunfo da indústria francesa, faço questão de vos exprimir do fundo do coração a alegria que sinto" (cit. Wolgensinger, 1992, p.146).

Era a vitória da Citroën, da indústria francesa sobre o Sara. O deserto havia sido conquistado. Expressões que alimentavam o imaginário colonial, representações de um processo, sinais de supremacia. A Europa fazia história em África. O diário de viagem e o filme documentário encarregar-se-iam disso mesmo.

Paul Castelnau, doutorado em Ciências, era o geógrafo da expedição. Para além de outras tarefas, fora-lhe incumbida a realização das filmagens. Refere Haardt no diário, que "graças a Castelnau, a missão recolheu uma enorme quantidade de documentos do mais alto interesse" (Haardt, 1923, p.34). Tratava-se da recolha de imagens como objectos, acto revelador de um espírito positivista, da recolha da diversidade do mundo para posterior classificação e conservação. Como afirmaria Marc Piault, um "espírito de colecta, de identificação e de apropriação característico do desenvolvimento europeu" (1992:59).



A "Travessia do Sara" marca o espírito de uma época. A visão do Outro como um absurdo, sem valores, reconhecido apenas pelo seu valor exótico. Uma verdadeira des-realização dos Outros, segundo Piault (1992:59). Tais factos alimentavam e satisfaziam as necessidades dos leitores de livros-relato de expedições e as audiências dos filmes de exploração.

Os leitores e as audiências maravilhavam-se com os actos heróicos dos seus exploradores, sentiam-se eles próprios fazendo parte da aventura. O exótico e o misterioso completavam os ingredientes. O norte de África prestava-se a tal. Tombouctou, "a misteriosa", era o destino final. "De Touggourt à Tombouctou par l'Atlantide", o sub-título, remetia o leitor para a misteriosa origem dos tuaregue, a lenda da Atlântida.

A própria face velada do homem tuaregue servia o efeito mistério. O litham impossibilitava a sua desconstrução, impossibilitava o apoderar-se do Outro, facto que leva Haardt a usar a expressão, "irritantemente cobertos", referindo-se aos homens tuaregue.



As mulheres, igualmente sujeitas a um olhar, chocam pelas atitudes consideradas libertinas, provocadoras e, pela sua liberdade e autonomia perante o homem tuaregue. A honra da presença feminina nestas paragens, parece apenas ser salva por Flossie, a cadela "exploradora", de cor branca, símbolo da elegância feminina francesa, e do bom senso pelos comentários que vai tecendo àcerca de tudo quanto observa. Irrita-se com as danças e o barulho do tam-tam e afasta-se, comentando: "Estes disparates não me interessam" (Haardt, 1923:134).



A 26 de Dezembro de 1922 a expedição atinge a região do Hoggar. "É feita a distribuição de presentes a estes grandes larápios do deserto, que acham muito natural tudo quanto lhes oferecemos. Antigamente, antes de sermos os donos do país, ter-nos-iam massacrado para obterem tais ofertas pelos seus próprios meios" (Haardt, 1923:97).

Os finais de etapa eram apoteóticos. Pequenas vitórias acumuladas, num crescendo de emoção, contribuiriam para a conquista final do Sara. O ponto da situação era enviado diariamente para a Europa, via rádio. O mundo inteiro acompanhava o dia-a-dia da expedição. O desenvolvimento tecnológico lado a lado com a expansão colonial.

O deserto do Sara funcionaria como "um verdadeiro laboratório de ensaios" (Haardt, 1923:16) para as futuras expedições da Citroën. De mãos dadas, a exploração, a expansão colonial, o cinema e a etnografia. A apropriação do espaço, do território, dos Outros. Segundo Marc Piault, seria esta necessidade de apropriação de "sociedades cada vez mais distantes das nossas, tanto geograficamente, como fisicamente, materialmente ou culturalmente, a justificar todo o empreendimento da exploração" (Piault, 1992:59).



Em França, a recolha de imagens do mundo não era uma tarefa exclusiva dos etnólogos, como afirmou José Ribeiro, (1995: 66 e 80) referindo-se nomeadamente à empresa Citroën. Era a própria recolha de imagens que justificava as expedições. Refere Marc Piault a este propósito, que as imagens recolhidas "reforçavam o conjunto de representações e discursos sobre o progresso e, as missões «civilizadoras» do homem branco" (Piault, 1992:59).

Cinema, fotografia, antropologia e expansão colonial, num percurso paralelo. Este poderia ter sido o título, do presente texto.

A empresa Citroën, na sua página oficial da Internet, apresentava-nos um espaço dedicado ao tema "Citroën e a aventura". Aí, deparavamo-nos com o seguinte texto: "Expedições Citroën: você não imagina tudo o que a Citroën faz para reduzir a distância entre os povos" (Citroën, s.d.).

As marcas dos novos caminhos foram efectivamente deixadas. Para os tuaregue, ou melhor para os imazighen, homens livres como eles próprios se denominam, as consequências de tais marcas também permanecem na vastidão do Sara.

Para reflexão, gostaria apenas de referir um anúncio publicitário datado de 1994, em cujo corpo do texto lia-se: "Andar em plena liberdade e sem nunca parar é a especialidade da série limitada ZX Touareg".




Bibliografia
Citroën et l'Aventure, [online], disponível em: http: // www. citroen. com/ home-f.htm (acesso em 15.02.1999).
DUROU, Jean-Marc (1994), La Passion du Désert, Paris, Ed. de La Martinière.
HAARDT, Georges-Marie e Louis AUDOUIN-DUBREUIL (1923), La Premiére Traversée du Sahara en Automobile - De Touggourt à Tombouctou par l'Atlantide, Paris, Librairie Plon.
PIAULT, Marc-Henri (1986), "L'Anthropologie à la Recherche de ses images", in CinémAction, Paris, nº 38, pp. 52-57.
PIAULT, Marc-Henri (1992), "Du Colonialisme à l'Echange" in CinémAction, Paris, nº 64, pp.58-65.
RIBEIRO, José (1995), "Cem Anos de Imagens do Mundo, Panorama do Cinema Etnográfico Francês" in Imagens do Mundo - Mostra de Cinema Etnográfico Francês, Lisboa, C.E.A.S. / I.S.C.T.E., C.E.M.R.I. / Universidade Aberta, Serviço Cultural da Embaixada de França, pp. 65-81.
WOLGENSINGER, Jacques (1992), André Citroën, uma biografia, Lisboa, Contexto Editora.




nota | Comunicação apresentada nos Colóquios de Antropologia Visual realizados na Universidade Aberta (Delegação Norte) em 12.03.99

© em todas as imagens (HAARDT, Georges-Marie e Louis AUDOUIN-DUBREUIL (1923), La Premiére Traversée du Sahara en Automobile - De Touggourt à Tombouctou par l'Atlantide, Paris, Librairie Plon)
© ® Citroën

Monday, December 01, 2008

Antropologia da Comunicação Visual


® Silk Cut

A discussão em torno do cartaz publicitário da Silk Cut, presente no romance de David Lodge, Nice Work (1988) é um exemplo paradigmático dos processos de leitura desencadeados por uma imagem, da qual emergem estratégias de comunicação visual, numa profunda inter-relação entre a antropologia e a semiótica.

A passagem em questão (retirada da tradução portuguesa, Um almoço nunca é de graça, Ed. Gradiva, 2001), coloca em confronto dois personagens, Vic Wilcox, administrador de uma empresa, e Robyn Penrose, professora universitária de Literatura Inglesa.




® Silk Cut © Charles Saatchi, Gallaher, 1983


"(...)

Um exemplo típico disso foi a furiosa discussão que tiveram sobre o cartaz publicitário da Silk Cut. Regressavam de carro depois de uma visita a uma fundição em Derby que fora comprada por canibais de empresas e que tinha para venda um moldador de machos automático no qual Wilcox estava interessado, embora tivesse chegado à conclusão de que era demasiado antiquado para o efeito. De tantos em tantos quilómetros, assim parecia, passavam pelo mesmo enorme cartaz à beira da estrada, uma imagem fotográfica de uma extensão ondulada de seda púrpura na qual havia um único corte, como se o tecido tivesse sido golpeado com uma navalha. Não havia palavras no anúncio, excepto o aviso governamental do ministério da Saúde em relação ao tabaco. Esta imagem ubíqua, que passava como um relâmpago a intervalos regulares, intrigava e irritava Robyn, e esta começou a fazer o seu trabalho de semiótica na estrutura profunda oculta por baixo da superfície suave da imagem.

Era, à primeira vista, uma espécie de enigma. Isto é, para o descodificar era preciso saber que havia uma marca de cigarros chamada Silk Cut (nota do tradutor: corte de seda. Em calão, cunt é vagina). O cartaz era a representação icónica de um nome que faltava, como um logogrifo. Mas o ícone era também uma metáfora. A seda tremeluzente, com as suas curvas voluptuosas e textura sensual, simbolizava obviamente o corpo feminino, e o corte elíptico, através do qual aparecia um fundo ligeiramente mais claro, era ainda mais obviamente uma vagina. Assim, o anúncio apelava tanto aos impulsos sensuais como aos impulsos sádicos, o desejo de mutilar, bem como o de penetrar no corpo da mulher.

Vic Wilcox reagiu com um escárnio escandalizado quando ela expôs esta interpretação. Ele próprio fumava outra marca, mas foi como se sentisse que toda a sua filosofia de vida estivesse ameaçada pela análise que Robyn fizera do anúncio.

-Deve ter uma mente muito retorcida para ver isso tudo num pedaço de tecido perfeitamente inofensivo -disse.

-Então qual é o objectivo? -desafiou Robyn. -Para quê usar tecido para anunciar cigarros?

-Então, é assim que eles se chamam, não? Silk Cut. É a imagem do nome. Nem mais nem menos.

-Imagine que tivessem usado um rolo de seda cortado ao meio: acha que funcionava tão bem?

-Suponho que sim. Sim, porque não?

-Porque pareceria um pénis cortado ao meio, é por isso.

Vic Wilcox soltou um riso forçado para disfarçar o seu embaraço. -Porque é que vocês não conseguem tomar as coisas pelo seu valor facial?

-Nós quem?

-Os intelectuais. Estão sempre a tentar descobrir nas coisas significados ocultos. Porquê? Um cigarro é um cigarro. Um bocado de seda é um bocado de seda. Porque não os deixam por aí?

-Quando estão representados, adquirem significados suplementares - disse Robyn. -Os signos nunca são inocentes. A semiótica ensina-nos isso.

-Semi quê?

-Semiótica. O estudo dos signos.

-Ensina-nos a ter mentes porcas, na minha opinião.

-Porque é que acha que os malditos cigarros se chamam Silk Cut?

-Sei lá. É só um nome, tão bom como outro qualquer.

-Cut tem qualquer coisa a ver com o tabaco, não é? A maneira como se cortam as folhas do tabaco. Como o Player' s Navy Cut... O meu tio Walter costumava fumar isso.

-E daí? -disse Vic, cauteloso.

-Mas a seda não tem nada a ver com o tabaco. É uma metáfora, uma metáfora que quer dizer qualquer coisa como, «suave como a seda». Alguém numa agência de publicidade inventou o nome Silk Cut para sugerir um cigarro que não arranha a garganta, nem causa tosse seca, nem cancro no pulmão. Passados uns tempos, o público estava habituado ao nome, a palavra silk deixou de ter significado, por isso decidiram fazer uma campanha publicitária para tornar a dar à marca uma imagem de qualidade. Um espertalhão qualquer da agência veio com a ideia de seda ondulante cortada com um golpe. A metáfora original é agora representada literalmente. Mas surgem novas conotações metafóricas - conotações sexuais. Se a intenção foi consciente ou não, não interessa. É um bom exemplo do deslize permanente do significado por baixo do significante.

Wilcox meditou nisto por um instante, depois disse: -Então porque é que as mulheres os fumam, hã? -A sua expressão triunfante mostrou que ele pensava ser este um argumento arrasante. -Se fumar Silk Cut é uma forma de violação agravada, como você pretende demonstrar, então como é que as mulheres também o fumam?

-Muitas mulheres são masoquistas por temperamento - disse Robyn. -Aprenderam o que se espera delas na sociedade patriarcal.

-Ah! -exclamou Wilcox, deitando a cabeça para trás. -Não podia deixar de ter uma resposta tola qualquer.

-Não sei porque está tão enervado -disse Robyn. -Você não fuma Silk Cut.

-Pois não. Fumo Marlboro. Embora possa parecer-lhe estranho, fumo-os porque gosto do sabor.

-Esses são aqueles que têm o anúncio do cowboy solitário, não é?

-Suponho que isso faz de mim um homossexual não assumido, não?

-Não, é uma mensagem metonímica muito directa.

-Meto quê?

-Metonímica. Um dos instrumentos fundamentais da semiótica é a distinção entre metáfora e metonímia. Quer que lhe explique o que são?

-Para passar o tempo.

-Uma metáfora é uma figura de estilo baseada nas semelhanças, ao passo que uma metonímia se baseia na contiguidade. Na metáfora, substitui-se a própria coisa por algo como a coisa a que se esteja a referir, enquanto que na metonímia se substitui a própria coisa por qualquer atributo, causa ou efeito.

-Não percebo nada do que está para aí a dizer.

-Bom, imagine um dos seus moldes. A parte de baixo chama-se draga porque é arrastada pelo chão, e a parte de cima cúpula porque cobre a parte de baixo.

-Fui eu que lhe disse isso a si.

-Pois foi. O que não me disse foi que a «draga» era uma metonímia e «cúpula» é uma metáfora.

Vic grunhiu. -Que diferença é que isso faz?

-E só uma questão de compreender como funciona a linguagem. Pensei que estivesse interessado em saber como as coisas funcionam.

-Não vejo o que é que isso tem a ver com cigarros.

-No caso do cartaz da Silk Cut, a imagem representa o corpo feminino metaforicamente: o corte na seda é como uma vagina.

Vic estremeceu ao ouvir a palavra. -É a sua opinião.

-Todos os buracos, espaços ocos, fissuras e pregas representam os órgãos genitais femininos.

-Prove-o.

-Freud provou-o, através da sua bem sucedida análise dos sonhos - disse Robyn. -Mas os anúncios dos Marlboro não usam metáforas. Deve ser por isso que você os fuma.

-Que quer dizer com isso? -disse ele, desconfiado.

-Não tem nenhuma simpatia pela maneira metafórica de olhar para as coisas. Para si, um cigarro é um cigarro.

-Exacto.

-O anúncio dos Marlboro não incomoda a fé ingénua na estabilidade do significado. Estabelece uma ligação metonímica, completamente falsa, é claro, mas realisticamente plausível, entre fumar aquela marca determinada e a vida saudável, heróica e ao ar livre do cowboy. Quem compra o cigarro compra um estilo de vida, ou a fantasia de a viver.

-Tretas! -disse Wilcox -Detesto o campo e o ar fresco. Tenho medo de entrar num campo com uma vaca lá dentro.

-Bom, então o que o atrai talvez seja a solidão do cowboy nos anúncios. Seguro, independente, muito macho.

-Ora, os tomates! -disse Vic Wilcox, o que era uma expressão forte vinda dele.

-Tomates... Aí está uma expressão interessante... -meditou Robyn.

-Oh, não! -gemeu ele.

-Quando se diz que um homem «tem tomates», aprovativamente, é uma metonímia, mas quando se exclama «os tomates!» em relação a qualquer coisa, é uma espécie de metáfora. A metonímia atribui valor aos testículos, enquanto a metáfora os usa para rebaixar outra coisa qualquer.

-Não aguento mais isto -disse Vic. - Importa-se que eu fume? Um cigarro normal e comum?

(...)"


© David Lodge (2001), Um almoço nunca é de graça, Lisboa, Gradiva


À colega Alexandra Neves, um obrigado pelo presente.